EU QUERO TCHU EU QUERO TCHA!


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sexta-feira, 1 de junho de 2012

QUEM SABE DEUS ESTÁ OUVINDO - Rubem Braga

Outro dia eu estava distraído chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.
Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saída terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:
- Você vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
- Mas é melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso – mas confesso que havia nele um certo remorso.
Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida, ela, o da Morte.
Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa – “seu Rubem, o cajueirinho…” – mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha.
Veio me mostrar:
- Eu comprei um vaso…
- Ahn…
Depois de um silêncio eu disse:
- Cajueiro sente muito a mudança, morre à-toa…
Ela olhou a plantinha e disse com convicção:
- Esse aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso, e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:
- Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!
Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com certa gravidade:
- É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo…
Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O MÉDICO E O MONSTRO - Paulo Mendes Campos

Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe passa.
 O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma caixinha de brinquedos.
 Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
 - Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
 O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua:
 - O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento carrega.
 O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando:
 - Mordida de leão.
 - Mordida de leão? - pergunta, desapontada, a enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do outro faz-de-conta. - Eu já disse tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho...
 Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.
 De repente, o médico diz que está com sede e corre para a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável droga.
 - Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você mesmo, doutor.
 Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com uma careta. Em seguida, propõe um trato:
 - Só se você depois me der um sorvete.
 A terrível mistura é sorvida com dificuldade e repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora.
A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico em monstro.
 Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa, termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante, espeta-lhe a espada na barriga e brada:
 - Eu sou o Demônio do Deserto!
 Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum apartamento carioca.
 Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que conte uma história ou lhe compre um carneirinho de verdade.
 E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar ameaçado pelas forças do mal.